domingo, 19 de setembro de 2010

Livres e falantes


Um interessante artigo de Rui Lage, poeta português, sobre a importância do domínio da Língua Portuguesa.

Livres e Falantes

Sabemos que é em abstracto a linguagem – e em concreto a língua – que permite que nos olhemos e pensemos a nós próprios. Que nos permite criar. Inclusive conhecimento científico ou lógico, pois um matemático português necessita da língua portuguesa para pensar e conceptualizar a matemática e comunicar as suas teorias. Somos animais falantes (e escreventes) muito antes de sermos animais sociais – há outros – ou animais políticos (hoje quase reduzidos a animais maledicentes ou a animais inquiridores).
Se temos consciência de nós mesmos enquanto seres humanos – diversos uns dos outros e opostos à Natureza mas por isso mesmo também livres com tudo o que há de trágico e doloroso nessa liberdade: a morte – é graças à linguagem. É através dela que configuramos o mundo, que processamos e elaboramos o que nos chega das percepções. Ora, em concreto, é falando e escrevendo em língua portuguesa que configuramos o (um) mundo português e que nos olhamos e pensamos a nós próprios enquanto portugueses nesse mundo (e não como islandeses ou senegaleses). Alguém duvida que sem a poesia de Camões e se Pessoa nós não seríamos nós, portugueses, mas outra coisa qualquer (se melhor se pior quem o saberá…)? Mas a linguagem também se elege como objecto de si mesma (como ensinou Foucault, entre outros), e torna-se consciente dos seus mecanismos, virtualidades, insuficiências e limites. Ela olha-se no espelho de si mesma. Para esbarrar no próprio reflexo devolvido: ou pior, numa superfície opaca. Começa então a exercer vigilância sobre si mesma.
Quando essa vigilância começa a ser uma pressão (deixem-me ao menos uma vez escrever o vocábulo da moda), aquele que pressiona (que se pressiona e violenta a si mesmo) chama-se escritor, criatura infeliz que só consegue trabalhar recorrendo ao tráfico de influências às angústias do tráfico, às pistas não encobertas) e à corrupção (do estilo para escapar ao estilo), e por cá tem pelo menos a felicidade de pertencer a um clube que vai muito além do nosso acanhado rectângulo (mesmo que alguns reclamem para este privilégios de realeza linguística) e que se chama lusofonia.

Rui Lage
JL – jornaldeletras.pt
5 a 18 de Maio de 2010

Nenhum comentário:

Postar um comentário